por Virgílio Gomes
Escrevo do Brasil, em vésperas do Carnaval. Curioso como esta época faz fervilhar toda a gente para os festejos. Eu entretenho-me pacatamente como observador, mas incapaz de me envolver nessa azáfama. Lembro-me dos festejos carnavalescos da minha juventude, meio desorganizados, um pouco espontâneos, mais água menos farinhas, alguns ovos destruídos e quarta-feira de Cinzas com a Morte e o Diabo a atormentar sobretudo moças jovens, e as mais envergonhadas, as maiores vítimas. O Carnaval era como a mistura da alegria dos primeiros dias de Sol entremeados com algum frio, a euforia e desregulamentação da alimentação em relação ao jejum quaresmal. E neste período se comiam os últimos “buchos”, “butelos” e “azedos”. Esperavam-nos quarenta dias sem comer carne às sextas-feiras. Sim, que já tínhamos saído da época medieval, quando o jejum era para todo o período. Claro que aqueles mais abonados, pagando a bula à Igreja, lá eram autorizados a manter os prazeres carnais na alimentação. Sem pecado.
Quando vou para férias alargadas levo comigo sempre três ou quatro livros, da pilha de algumas dezenas à espera de vez de leitura. Tenho uma relação compulsiva com os livros. Quando os vejo, e tenho intenção de ler, compro-os e vão ficando à espera de oportunidade. Na bagagem para esta estadia trouxe um livro que pensava ler logo que o comprei, há talvez meia dúzia de anos. Trata-se de relato, estudo, sobre um grande transmontano que tive a oportunidade de ter conhecido e até participado num evento que organizei numa sexta-feira treze. A famosa “Queimada da Bruxa” de que guardo o manuscrito original da receita, para fazer em palco. Intitulado “António Fontes, Causas e Casos de um Padre Barrosão” o seu autor é João Gomes Sanches, outro transmontano ilustre da nossa cultura. Aí se pode ler que o “Padre Fontes bebeu o vinho pela mesma cabaça que as pessoas que com ele trabalharam e comeu no prato em que os outros comeram”, e conviveu com aqueles que “costumavam matabichar, com nozes e aguardente, …”. Foi decerto essa educação de igual que lhe permitiu envolver-se com o seu rebanho e, como igual, se impôs sem nunca o querer. Se calhar, se houvesse mais Padres Fontes não se atribuiriam tantas responsabilidades “ao atraso económico de tantas regiões”. Sou suspeito ao elogiar este livro pois o conceito de tenho de homens da Igreja se ajusta quase inteiramente com os comportamentos e atitudes do Padre Fontes. Se calhar, se eu tivesse encontrado vários Padres Fontes não teria perdido a Fé e tornar-me num tranquilo agnóstico. Não é este, porventura, o espaço para estas delongas individuais. A leitura deste livro fez-me recordar uma frase, que possivelmente estou plagiando: “Pode tirar-se um homem de Trás-os-Montes. Não se consegue é tirar Trás-os-Montes de um homem.” E levou-me a reflectir como esta máxima se enquadrava em mim. Apenas vou referir, pecados desta minha crónica, a educação do gosto e as tradições alimentares adquiridas enquanto lá vivi.
Tive ocasião de referir na última crónica que, para me sentir transmontano, não necessito de me deslocar à terra. Tenho, de tal forma, enraizados hábitos e sensibilidades que mantenho e me transportam para lá. Tive a sorte de ter sido educado com muita liberdade. E esse direito, e o respeito à liberdade, me permitiram esta postura. Apetece-me citar o famoso poeta islâmico Ibn Muqãna (séc. XI), o filho de Alcabideche, que escreveu: “o amor à liberdade faz parte do carácter nobre”. Foi essa liberdade, associada a rituais de repetição, que me permitiu conscientemente instalar em mim um sentido do gosto alimentar que me faz referenciar ainda e desenvolver os paralelismos com a minha alimentação. Do simples guisado de batatas com bacalhau, que sempre pedia a minha Mãe, com embirração dos meus irmãos, ao ainda hoje, saudoso, arroz de repolgas (pleurótos) que acompanhava um leitãozinho assado no menu obrigatório das refeições que fazia a sós com o meu avô Nogueiro. Só mais tarde percebi o quanto a liberdade me educou o palato. Até pela dificuldade em fazer melhor. Lembro-me ainda, já mais velho, e pela liberdade de poder não me apetecer o jantar feito, ser autorizado a fazer alternativa na cozinha. Nunca saía melhor…!
Mais tarde me dei conta que o gosto, ou a prática de alimentação das origens, também é um acto de conforto, de aconchego. Coincidência… estou a ouvir Ney Matogrosso que não consigo reproduzir na totalidade e que parece dizer “…medo dá choro, que é uma necessidade de carinho ou um abraço…”. Possivelmente em períodos mais fragilizado também sinto necessidade, e me aconchego na cozinha transmontana. Não estou a ser piegas, nem a criar mitos. Racionalmente, e pela liberdade que sempre tive, penso que, de facto, ainda tive a sorte de comer em casa, comer os bons produtos, assistir ao mesmo prato variando de família para família mas mantendo o essencial que lhe dá autenticidade e genuinidade. Ainda me lembro de reconhecer a origem das alheiras pelo tempero que as denunciava. Sim, porque naquele tempo trocavam-se alheiras, uma cortesia de tradição e também em vias de extinção. Os mitos tendem a fugir… Como escreveu Fernando Pessoa, em Mensagem, “O mito é o nada que é tudo”. Não tenho mitos tenho a consciência da educação do gosto, a liberdade para aceitar a evolução e os aplausos para a modernidade baseada nos produtos da terra com qualidade e, sobretudo, com sabor.
Vamos entrar no jejum quaresmal. O jejum devia levar-nos a pensar naqueles que não têm que comer. Não nos faz mal, a todos, reflectirmos, também, sobre a qualidade alimentar que por vezes somos vítimas nas grandes cidades. Não é preciso frequentar curso de nutricionismo. Mas já é fácil termos um nutricionista por perto Das heranças alimentares recebemos muitos ensinamentos. E o principal é que a sopa é um alimento fundamental e regenerador e, que por si só, pode constituir uma refeição. É fundamental que as crianças compreendam que a sopa é um bom alimento, e não um castigo. E as saladas? E a fruta fresca da época? E o bom pão de centeio ou de mistura?
Vem aí, não tarda muito, o folar. Que é bom, sabe bem, mas como tudo não devemos abusar. Em minha casa o almoço foi algumas vezes caldo verde e folar recheado de várias carnes. Quem se lembra destas refeições?! E bebia-se vinho ou chá. E depois, a pequena desgraça com a abundância de doces. Nascemos numa tradição doceira. Hoje em dia temos as manias que só a doçaria de origem conventual é que é boa ou de eleição. É altura de recuperar a variedade de doces regionais e populares, que têm a vantagem de ter menos açúcar, e assim terminar a refeição com o café, e esse doces alguns deles em extinção.
Há amigos de Bragança que quando vêm a Lisboa não se esquecem de me trazer económicos, roscas, súplicas e até rebuçados da Régua. Estas pequenas delícias deveriam ser encaradas com apresentação permanente nas mesas transmontanas. Para que a tradição não se extinga. Até me apetece falar a crise mal informada. Estes doces até são mais baratos, e só precisam de imaginação e entusiasmo para os servir. Por exemplo para os económicos, que começam a ficar secos, parto-os em fatias com menos de um dedo de grossura, coloco-as na torradeira e depois cubro-as com geleia ou compota caseira. Mas também ficam bem com fatias de Queijo Terrincho.
O que tem faltado às nossas tradições alimentares para ocuparem lugares de prestígio é exactamente adquirirem uma linguagem actual, capaz de enfrentar os embates dos produtos da globalização associada aos esquemas de grande comunicação. É caso para perguntar porque é que as pizzas e os hambúrgueres se instalaram tão rapidamente. As pizzas não passam de uma massa de pão coberta por produtos que também temos como o queijo, o tomate, o azeite… Os nossos pães de mistura ou simplesmente o de centeio nunca os soubemos (ou adaptámos) rechear de bom presunto, do nosso queijo ou simplesmente fazer com eles boas bifanas. E promovê-las. A publicidade e a comunicação repetitiva criam apetites. Já repararam que as fotografias são sempre melhores que os produtos que nos servem? E os hambúrgueres com aquele pão, que engorda e cria alimentação deficiente, com um produto com componentes de carne? Podemos voltar ao nosso pão e recheá-lo com carne Mirandesa. Experimente e provoquem os nossos jovens e, decerto, irão sentir a diferença. Ajudar a educar o gosto é uma tarefa que mais tarde irão agradecer.
BOM APETITE
© Virgílio Gomes
virgiliogomes@virgiliogomes.com
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