sábado, 9 de agosto de 2008

MEMÓRIAS DE UM (POBRE) PARAÍSO PERDIDO

por António Augusto Fernandes


Aí por meados do século XX, no rescaldo das misérias do pós-guerra, a efervescência do renascer de um mundo novo que vinha fermentando por esse Portugal fora passava ainda ao lado de Rebordainhos. Resquícios esporádicos de civilização avistavam-se lá em baixo, em Rossas: automóveis raros passavam ronceiros pela estrada nacional nº 4 e o comboio da linha do Tua passeava-se, muito de seu vagar, entre o Douro e Bragança.


Ora foi por essa altura que o Estado Novo se lembrou de que, lá em cima, nos picotos da Serra de Nogueira, uns trezentos serranos bravos lutavam pela vida, rodeados de soutos e touças onde, no Inverno, uivavam os lobos mais bastos que pardais nas eiras depois das malhadas e no o Verão o sol causticava. E então mandou rasgar, a pá e picareta, aquela estrada madraça que, ainda hoje, os liga ao IP e à estação de caminho de ferro e ao vasto universo. Até essa altura, naquele fim do mundo a mil metros de altitude, a vida decorria sem sobressaltos de maior, atreita apenas às maleitas em que a vida era pródiga e a querelas, rixas e alegrias comunais que os serranos vinham vivendo desde sempre, em moldes idênticos aos dos tempos velhos em que D. Sancho II lhes concedera foral. Até à construção da estrada só dali se saía a pé, de burrico ou no pachorrento carro de bois alcandorados nas poderosas rodas de freixo maciço que alagavam os velhos caminhos com a melopeia cheia de trinados das treitouras bem cingidas aos eixos rijos como aço. Eram desses carros de bois, com a mesma configuração que apresentam nas iluminuras do Livro de Horas do senhor D. Manuel, o primeiro de seu nome, que dependia o ténue tráfego comercial: levar os sacos o centeio e a batata sobejos do sustento das suas gentes e trazer o parco arroz, o pozito açúcar, o cotim das andainas e o aço para apontar as guinchas de arrancar batatas e os enxadões de desfazer monte.


Os três quilómetros até Rossas, percorriam-se, pedibus calcantibus, pelo carreirão deArufe, tortuoso como sendas do Tibete: as mulheres em chinelos e com os sapatinhos depolimento guardados na saquita de chita para serem calçados ao chegar à estação. E do velho Jarrete contava-se que para poupar as botas novas de couro cru fazia o caminho descalço. Um dia que estourou a unha do dedão do pé com uma topada num calhau, largou aliviado: − Porra! Olha se eu trazia as botas calçadas! Mas os carros de bois, para evitarem o desnível da subida da Galiana, alongavam-se em grande volta pela Quinta do Sepúlveda, pelo Cano, pela Airoá, duplicando assim o percurso. Muitos dos velhos finavam-se sem que alguma vez houvessem pisado o macadame de Bragança ou visto as maravilhas dos lumes eléctricos, nem para consultar


um médico, por ali tratando as maleitas em que a vida era sobeja com tisanas de ervas milagreiras e fumigações. O comboio, sim, viam-no lá em baixo, minúsculo como lagarta torcendo-se sobre as duas fitas de ferro e largando baforadas de fumaça pelas ventas. Quando o vento soprava de leste, ouviam-no assobiar como quem se despede − por aqui me vou − até se engolfar no ventre da terra pelo túnel de Arufe, deixando no ar nuvens de algodão sujo e o apelo nostálgico do vasto mundo que se estendia para lá do círculo do horizonte.


A linguagem em que exprimiam alegrias, dores e necessidades do quotidiano rescendia ainda ao galaico-português em que os trovadores do século XIV haviam chorado os seus males de amor. O pão de cada dia estava dependente do sol que fazia germinar as sementes, das chuvas que fecundavam a madre da terra, das trovoadas que em minutos arrasavam o labor de um ano e de Deus que pontificava na sua igrejinha de granito no centro da aldeia que uma pedra no ângulo do campanário data de 1745.


Os insecticidas eram ainda desconhecidos: os piolhos desbastavam-se muito ecologicamente a sabão macaco ou estourando-os entre os polegares e o escaravelho da batateira, recém-aparecido, ao que se dizia, por malandrice americana, afogava-se em latinhas com querosene.


Na roda do ano, a alimentação cingia-se ao pão negro de centeio, à batata e ao conduto fornecido pelo porquito de ceva que se imolava pelo Natal e guardava na salgadeira ou dependurado no fumeiro sob a forma de alheiras e salpicões, porque à escassez dos meios naturais acrescia a penúria herdada da guerra há pouco finda. − Haja saúde e coza o pote − como diz o outro. Mas o negro pote de três pernas pouco mais cozia que batatas com couves e, quando bem calhava, a talhada de toucinho com que se adubava o caldo e, mais raramente, a magra postita de bacalhau, caro como o lume! Ceava-se caldo e batatas e almoçavam-se, de madrugada, as batatas e o caldo sobejos da ceia. Uma sardinha para cada um, quando o sardinheiro adregava de passar, e quanto a chicharros − dos três vinte a cinco tostões − um para cada dois. O pão moía-se no moinho comunal do Catrapeiro e, cada quinze dias, com grandes gabelas de urzes e giestas em que o monte era pródigo, esquentavam-se os fornos que, embora individuais, tinham utilização comunitária, e ali se coziam aqueles pães centeeiros grandes como rodas. Outros mimos como o pão de trigo, o chibinho medrado entre urzes e tojo pelos montes ou o naco de vitela só nas festas assinaladas no calendário. E ninguém tinha o desplante de celebrar aniversários: era lá coisa que se festejasse a data da entrada neste vale de lágrimas! E tirava-se também a barriga de misérias nas celebrações rituais da fartura − as malhas e a matança, com sua licença, do porco. Era este, o cevado, para o qual se inventara o familiar chamadoiro de larego − o amigo do lar − que regalava os palatos serranos com os petiscos mais mimosos: aqueles salpicões muito engelhados e de estética atroz que sazonavam no fumeiro e se saboreavam em rodelas finas cor de vinho velho sobre o carolo de pão de centeio, aquele presunto róseo marmoreado, inventado por algum deus desconhecido para deleite dos seus comparsas no Olimpo e concedido como consolo aos mais afortunados dos mortais. E as alheiras? Pelas manhãs cintilantes de geada, evolava-se pela telha vã das cozinhas e pairava sobre a aldeia uma névoa ténue amarrada pelo frio em que se enlaçavam o cheiro acre da dos cavacos de carvalho ardendo sobre a laje sagrada do lar e o aroma dessas alheiras alourando sobre as brasas e depois acompanhadas pelas vastas malgas de café de cevada. É a excelcitude destes prazeres concedidos também aos pobres que nos faz compreender o culto antiquíssimo ao porco traduzido em dezenas de megálitos com o nome e a forma aproximativa de porcas ou berrões, espalhados por todo o Nordeste. O cochino, durante a ceva era tratado com cuidados de mulher parida, com todos os mimos: farelo, grão, nabos, castanhas, as perfumadas castanhas mamotas que os ganapos pilhavam do caldeirão onde se lhe cozia a vianda, dependurados sobre as grandes fogueiras do Inverno incipiente; e ainda aquele luxo das folhas de negrilho que a juventude mais lépida ia ripar nos ramos cimeiros dos olmos que se erguiam como espeques nas estremas dos lameiros; essas folhas, ásperas como lixa, raspavam os intestinos do bicho e, diziam os antigos, davam aos presuntos curados na aldeia um não-sei-quê que os distinguia de todos os outros.


Mas isso era papa fina afugentada do cotio e reservada para os dias assinalados na folhinha ou dos trabalhos maiores ritualizados na roda do ano, como matanças ou malhas. De resto, o passadio do dia-a-dia, de uma austeridade cenobítica, esbeltava os corpos, enrijava as almas e deixava-lhes o céu garantido.


O termo da freguesia abrange os seus doze quilómetros quadrados, mas quase tudo cerros escalvados de terras delgadas que nunca tentaram frades de ordem rica nem senhores de pendão e caldeira. E porque os ricos e poderosos nunca cobiçaram tais terras, todos eram donos e senhores de leira onde colher as suas cinquenta ou cem pousadas e de belga onde plantar a cesta de batatas e o talo de couve galega para o caldo, o que lhes dava direito a sentirem-se donos e senhores da sua vida e alijar qualquer tipo de canga. Dignos de serem agricultados à maneira do sul só alguns vales, engordados pelo húmus que, ao longo de séculos as enxurradas iam arrastando dos altos e que tivessem água de nascente, para lameiro ou batatal. Mas, como abundava a mão-de-obra, todos os cerros andavam a cultivo. Esgaravatavam-se montes e pedregais onde só o centeio, amigo do serrano, resistente a secas e geadas, vingava para que, havendo pobreza, não houvesse miséria nem se morresse à míngua.


Nos princípios do Outono, os plangentes carros de bois chiavam pelos caminhos de touças e soutos atestados de toros de carvalho e ramos sobejos da poda dos castanheiros, deixando os sequeiros à porta de casa abastecidos para enfrentar a longa e ríspida invernia que se fazia anunciar pelas primeiras chuvadas e pelas névoas que toucavam a Serra dos Pereiros.


Pelos Santos, era já com os dedos engaranhados pelo frio dos nevoeiros outonais e pelos primeiros sincelos que os castanheiros pingavam as castanhas mais temporãs. Em dia de Todos-os-Santos, os garotos acudiam aos soutos acendendo grandes montes de fetos e giestas secas onde tostavam as primeiras castanha da temporada. Com a sua malguita de marmelada e meia dúzia de malápios trazidos nas sacolas de remendos festejavam o primeiro feriado do ano com mais orgulho e sarambeques que sibaritas orientais.


Na poveca serrana não se podia dizer que houvesse pobres e ricos, mas apenas uma pequena diferença entre pobres e menos pobres, cifrada em uns alqueires de centeio e umas sacas de batatas a mais de um lado ou de outro. De resto, todos ganhavam honradamente o pão de cada dia com o suor do próprio rosto e a ajuda do vizinho, não se registando desequilíbrios sociais suficientes a engendrar qualquer hipótese de revolução ou conflito social. Uma que outra casa lá tinha o seu moço de lavoura, quase sempre de fora, que tinha alojamento no palheiro, com duas mantas encafuadas no feno bem cheiroso, aquecido pelo bafo das vacas, dentro de todos os requisitos da ecologia.


O Largo do Prado era o centro social onde se enfrentavam as duas tabernas concorrentes mas amigas. Aos domingos de tarde, ouvida a missa do P. Amílcar, para aí vinham os homens espairecer sob a bênção patriarcal de um freixo e um negrilho monumentais, enquanto as mulheres abancavam à soleira da porta de casa para desenferrujar a língua e pôr em dia os faitsdivers comunais. Aliás o freixo do Prado tinha a sua crónica: uns anos por outros, aparecia um figuro da cidade que pagava um cântaro de vinho ao pessoal e, numa solenidade de rito, ia lançar ao tronco da árvore o copo que lhe era devido, em memória do avô que o tinha plantado há que vidas. A rapaziada mais espigadota, ainda com ânimo para tais folestrias depois de uma semana agarrados ao cabo do enxadão ou à rabiça do arado, jogavam ao fito, à relha ou ao calhau, muito esfuziantes e provocadores na meça de forças, sobretudo quando passavam as moçoilas, muito louçãs nas suas chitas domingueiras, fingindo-se ariscas no faz-de-conta de algum recado urgente e lançando o rabicho do olho para os conversados. Os mais entradotes a quem os anos já tornavam mais pesada a rabadilha e amainavam as quenturas do sangue, abancavam para uma partida muito vozeada de sueca ou o chincalhão a quartilho fraternalmente partilhado por todo o adjunto. E, por altura das ave-marias, quando as mulheres embiocadas corriam pressurosas para o Terço, uma animação muito pingueira estrondeava já por todo o Prado.


Ao centro do largo gorgolejava uma bica que trazia a água encanada lá de cima, do Lombode-à-Igreja, sítio do lugarejo primitivo, de reminiscências castrejas, um alto pedreguento batidode todos os ventos, donde se avistavam muitas léguas em redor, com as vantagens defensivas que a localização representava nos grossos tempos dos avoengos que de lá devem ter avistado as legiões de César calcorreando a via romana vinda de Salmantica em demanda de Aquis Flaviis, galgando a serra lá em cima, na garganta do Pórto. Lombo-de-à-Igreja lhe chama o povo, que os topógrafos, ou por uma ignorância a crassa ou por dureza de ouvido, cadastraram como Agreja.


Além dessa bica e de uma outra mais aristocrática, gizada pelo Sr. professor Francisco Ribom junto ao pelourinho, matava-se a sede, pela concha da mão ou pela aba do chapéu, daFonte Grande, da Fonte do Espinheiro e da Fonte da Vila, três fontes de chafurdo, de água granítica abençoada, com a naturalidade bíblica e a falta de higiene de quem desconhecia a existência de termos obnóxios como poluição, micróbio ou bactéria.


Nesses tempos, à aldeia assistia ainda o designativo de vila usado pelos dos Pereiros, com origem em velhos tempos, não menos pobres, mas de maior prestígio, conferido por foral de D.Sancho II e atestado pelo velho pelourinho que perdera já a cabeça e os anos corcovavam sobre a fraga esconsa que lhe servia de soco, à ilharga da Igreja e pela memória da Casa da Cadeia, então adscrita a habitação do professor. De resto, a aldeiazita de cem fogos, vista de longe, tinha um ar airoso: ruas assaz direitas e largas para o comum das aldeias nortenhas, espraiada pela encosta voltada a sul e de costas para Espanha. A poente alteava-se a cumeada da Fraga do Berrão, onde em tempos presidira a divindade tutelar de uma porca como a de Murça, furtada, diziam os antigos, pelos de Parada; em frente, barravam-lhe o horizonte os longes azulados da serra de Bornes, e a leste a linha esfumada do planalto que vai de Mogadouro a Miranda. Olhada do Alto da Cabeça que lhe ficava defronte, o povoado tinha o seu quê de prazenteiro, porquanto a tristura das paredes negras de granito e dos telhados pardos do musgo se esvaía, amaciada na grande profusão de verdes: negrilhos, calineiros, macieiras e nogueiras e os remendos mimosos dos hortejos entremeados com as casas. Aqui e além, a mancha de cal dos muros da Casa da Aula, da Igreja e do Cemitério e mais três ou quatro casas, desabrochava como flores de esteva sobre fundo de urzes e codeços.


Caldeados pela aspereza do clima e rijeza do solo, os serranos não eram particularmente expansivos, mas também não eram, de seu natural, azedos. Parcos de palavras, até na brevidade com que narravam os casos da vida ao serão ou suciando pelas tabernas, lá se tornavam mais palavrosos com o copito bebido à sobreposse. Então diziam o que deviam e o que não deviam e rebentavam altercações breves como tempestades de Agosto que os mais cordatos e menos bebidos amainavam sem sobressalto de maior. Calçavam-se tamancos talhados em amieiro pelo tio Grilo soqueiro e vestia-se cotim chita; a roupa interior, quando calhava de se usar, era de tomentos que produziam sobre a pele o efeito penitencial da lixa sobre a madeira. Mas era gente de alma lavada como geralmente são os habitantes das serras, afeitos a ares limpos, horizontes largos e habituados a apenas terem Deus acima de si. E, como que demarcando essa única dependência, já os antigos tinham erigido cruzes de pau tosco sobre soco em cantaria bruta nas quatro entradas da povoação: a caminho da Tempa, pelo leste, na saída da Airoá, a sul, à Corredoura do lado poente, e a norte quando se vai para a Tergaça, porque, sem perderem muito tempo com beatérios, conservavam o sentido do Transcendente e aprestavam-se de boamente a desencardir a alma e receber Nosso Senhor pela Páscoa da Ressurreição. Nas tardes de trovoada brava, quando os alustros fuzilavam sem relego e terrincos medonhos pareciam querer afundir o mundo, quem mais por perto andasse da Igreja apressava-se a ir desinquietar do seu nicho de santo um S. Silvério, papa e mártir muito maneirinho, de dois palmos. Debaixo de um vasto sombreiro de doze varas, o santo lá se deixava transportar para o adro como infante ao colo de alguma comadre, muito compostinho com sua mitra e báculo. Voltado para a serra a poente, ficava-se em contemplação, futurando das misérias que a violência dos elementos poderia acarretar a agros e criação se não lhes acudisse. E o santo acudia-lhes sempre, porque aquela gente era boa quando podia e a vida a não aporrinhava em demasia. De tal protecção acrisolada tinham a certeza os serranos quando, no dia seguinte, pelos soalheiros se fazia relato muito bisbilhotado e condoído das desgraças sucedidas nos povos em volta: um castanheiro de séculos rachado de alto a baixo, trinta ovelhas fulminadas, um batatal arrastado pela enxurrada… E sabese lá mais o quê! Este São Silvério que pontificava à esquerda do aro do presbitério era um santo muito da devoção da pequenada, fosse pelo seu tamanhinho, fosse por fazer com muita virtude as vezes de Santa Bárbara nas trovoadas. Trocadamente pintado de roxo por algum pinta-monos menos familiarizado com a hagiografia, mais tarde foi reconduzido aos seus trajos brancos de papa e parece que ainda assim se mantém.


De resto cantavam loas ao Deus Menino e arrematavam as roscas do charolo pelo Natal, casavam-se as moças e serravam-se as velhas por um embude, de outeiro para outeiro, pelo Carnaval, celebrava-se a fartura efémera das colheitas no final do Verão e faziam-se filhos por toda a roda do ano, como mandava madre natura. E era assim que a Casa da Aula andava repleta de criancedo: umas vinte rapariguinhas muito conversadeiras para a D. Maria e outros tantos rapazotes brutos e vivaços para o mano, o Sr. Francisquinho Ribom, quando nos tempos sáfaros de hoje não chegam à meia dúzia por atacado e a escola já fechou por falta de quorum.


Os tempos não eram melhores que os de hoje, nem mesmo pintados no retábulo da saudade, bem pelo contrário. Eram outros e assim foram vividos. E, dentro de pouco, vê-losemos sumidos na voragem dos dias, não figurando sequer como ligeira nota de rodapé nosmanuais etnográficos.


Por isso, para que não caiam de todo no olvido, deles aqui se lavra nota, porque a grande história é a que nos moldou a infância a que pertencemos, mesmo quando há muito perdida, se dela nos sobram para sempre uns fiapos de nostalgia guardados nas arcas da memória.

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