quarta-feira, 24 de setembro de 2008

ARES DA SERRA

II - POTRIQUEIROS

por António Augusto Fernandes

Conversava-se ao desenfado sobre política e políticos no meio daquela gente tranquila das serras do norte. Aproveitando uma pausa nos prolóquios, uma mulherzinha miúda, de atentos olhos de azeviche, envolta nos trapos negros de quem já muito aturara à vida em fomes e pesares, sai-se de lá com a exclamação desenganada: São uns potriqueiros! E a palavra saltou-me, inteira na sua risonha complacência, dos escaninhos das memórias da infância, onde adormecera há que vidas.

Onde iam eles, os potriqueiros!

Nos tempos esganados que se seguiram à Segunda Grande Guerra, não era fácil para um pobre acudir todos os dias aos ladridos da barriga atormentada pela fome e havia que recorrer a almudes de criatividade para rapar o magro pão de cada dia, dia sim dia não. Dentre esses imaginativos salientavam-se os potriqueiros. Potriqueiros lhes chamava o povo do norte, fazendo uso de uma simpática corruptela de pelotiqueiros, significando uma espécie de artistas mais ou menos circenses que faziam jogos malabares com pequenas pelas, cujo diminutivo seria pelotas.

O povo até que gostava deles, dos potriqueiros, seus irmãos na miséria e descendentes de uma longa linhagem de artistas saídos do povo, cujos ascendentes mais remotos se situavam entre aqueles velhos jograis que, no tempo dos afonsinos, percorriam feiras e vilares com seus momos e mistérios, seus cantares e poemas, numa Idade Média que, nas serras do interior, teimou em prolongar-se pelo século XX, tanto no imaginário religioso e profano, como na maneira de lidar com a terra. Com o tempo a palavra foi alargando a sua dimensão semântica e passou a significar também aqueles que mostram capacidade de sobreviver à custa de simpáticas artes e manhas de carácter mais ou menos histriónico.

Esses potriqueiros arribavam à aldeia pelo Outono, quando partiam as andorinhas e o lavrador dava por findas as canseiras das malhas, da arranca das batatas, pois que os ouriços dos castanheiros, ainda não tinham começado de arreganhar. Pelas encostas da serra, acobreavam as ramagens de touças e soutos e as primeiras névoas prenunciavam o repouso da madre natureza exausta da parturição dos seus frutos. Era um tempo de pausa em que as tulhas cheias deixavam o lavrador mais propenso a largar uma malga de grão de centeio ou meia dúzia de batatas nos alforges destes histriões errantes, em troca de uns malabarismos, duas anedotas brejeiras e alguns truques de ilusionismo que lhe fizessem esquecer as canseiras de todo um ano a lutar com uma terra áspera e avara em mimos. Surdiam imprevistamente, não se sabe donde, com suas azémolas tropiqueiras ajoujadas debaixo dos magros trastes da cozinha de campanha, das vestimentas com que encenavam as suas pantominas e, às vezes, o luxo de um velho animatógrafo asmático cujas fitas enguiçavam a cada cinco minutos.

A moçoila mais vistosa da tropa fandanga, de perna ao léu e faces avivadas a lápis lazúli e vermelhão, mais o moço do cornetim, davam volta ao povoado, alagando de alacridade as ruelas bisonhas da aldeia granítica com o seu colorido e as suas notas vibrantes do velho chanfalho e arrastando atrás de si a horda grulhenta do garotio. E um frémito de charme exótico sacudia as grossas gentes serranas.

À noite, no largo da aldeia, com o sobrado de dois carros de bois desembaraçados das engarelas, postos os pinalhos na horizontal, faziam palco para exibição das suas pantominices, ou, se o tempo não estava para folestrias, em palheiro mais amplo lastrado de palha nova, pedido de empréstimo a lavrador mais galhofeiro. E o pessoal acorria a esse Tivoli improvisado, mais basto que pardais a uma eira depois das malhas. Compenetradamente, os artistas tentavam compensar o seu público dos magros tostões desembolsados entregando-se com denodo aos seus jogos de prestidigitação, à declamação histriónica de estrofes mais ou menos fesceninas e à encenação rudimentar de farsas ligeiras herdadas e estropiadas desde os tempos de Gil Vicente.

Desapareceram os potriqueiros. Desapareceram levados pela correnteza do imparável tempo que tudo consigo arrebata. E, com eles varreu-se a palavra mágica, potriqueiros, que nem sequer o Houaïss nem o Dicionário da Academia registam.

(a publicar também no blog de Rebordaínhos)

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